A Face Oculta da Escola: educação e trabalho no capitalismo.
Autor: Mariano F. Enguita, 1989

1ª parte – A TRANSFORMAÇÃO DO TRABALHO

Segundo o autor, concebemos normalmente o trabalho como uma atividade regular e sem interrupções, intensa e carente de satisfação. Somos incapazes de imaginar o trabalho de outra forma. Veríamos como irracional interromper nossas tarefas de vez em quando para entregar-se ao descanso, ao divertimento e às relações sociais. Trabalhamos o máximo possível para obter o máximo ganho possível, buscando satisfação no consumo. A organização atual do trabalho começou a ser implantada ao final do século XVIII e início do século XIX. O capitalismo e a Industrialização trouxeram aumento da riqueza, mas também atrocidades como o trabalho forçado, exportação de enfermidades às quais não estávamos imunizados e ainda a ansiedade, o stress, a insegurança, entre outros. O desejo desenfreado de consumir cada vez mais nos causam frustração. Nossa sociedade nutre uma imagem de existência de oportunidades para todos que não corresponde à realidade, o que para a maioria representa fracasso, perda de estima e auto culpa. Na sociedade industrializada a imensa maioria das pessoas não decidem qual será o produto de seu trabalho. A liberdade não é algo absoluto, mas sim relativo à realidade que nos rodeia, o trabalho é considerado uma carga, um esforço, uma fonte de desprazer. Segundo o autor, o primeiro passo verdadeiramente importante no que concerne ao processo de trabalho é a produção para a troca. Rompe-se aí a relação direta entre a produção e as necessidades. Já não se produz para o uso e consumo, mas para a troca. A divisão manufatureira do trabalho e a passagem da produção para o mercado de trabalho assalariado representa a passagem da independência à dependência, à inserção no seio de uma organização estruturada em torno de um poder hierárquico e alheio à pessoa do trabalhador. O trabalhador perde o controle sobre o processo de trabalho, passa da atividade criativa à inserção ao pré-organizado, da autonomia à submissão de normas. A divisão entre trabalho manual e intelectual que vai do complexo qualificado ao simples e desqualificado. As tarefas do trabalhador tendem a reduzir-se a funções de execução. Tem-se aí o processo de desqualificação e degradação do trabalho. O tempo passa a ser o meio principal cuja finalidade é a recompensa em dinheiro pelas horas trabalhadas. A fábrica e o trabalho assalariado foram desde o primeiro momento coisas indesejáveis para a população europeia. A busca de equilíbrio entre trabalho e bem estar, muito comum entre os trabalhadores independentes, cedia lugar à tentativa de maximizar o rendimento do trabalho dos assalariados por parte do patrão que buscava o rendimento sem limite. As fábricas no princípio eram compostas, em sua maioria, pelos desvalidos da sociedade: camponeses expulsos de suas propriedades, soldados licenciados, indigentes e desvalidos de todas as classes e todos os ofícios. Nas minas do País de Gales era habitual, nos séculos XVIII e XIX, empregar criminosos e fugitivos da justiça. Na Rússia Czarista, os artesãos urbanos preferiam a pobreza, ao se converterem em operários comuns. Os artesãos preferiam viver mal da crise dos seus ofícios, trabalhando a domicílio, mas mantendo um certo grau de controle e autonomia em seu trabalho, a ter que transpassar a porta das fábricas, que eram a negação de sua independência. O recrutamento dos operários para a produção que se desenvolveu na Inglaterra desde o começo do século XVIII, utilizou-se, às vezes, de meios coercitivos. Entre esses, figura a Lei dos Pobres e a Lei de Aprendizes da rainha Elizabeth. Quem não se apresentasse voluntariamente era conduzido às oficinas públicas regidas por severíssima disciplina. Nenhum desocupado recebia ajuda senão mediante seu ingresso nas oficinas coletivas. Mais tarde ou mais cedo, a massa de trabalhadores vira-se expropriados de seus meios de produção e obrigados a trabalhar. A redução dos indivíduos à condição de trabalhadores da indústria doméstica ou assalariados não eliminava o peso das tradições culturais em torno da relação entre o trabalho e a vida. Os artesãos, em sua maioria, eram donos do seu tempo, começando e terminado quando desejassem. Embora o empregador elevasse o pagamento por peça com o objetivo de estimular, muitos preferiam o ócio aos rendimentos. De modo geral, os trabalhadores pré-industriais pareciam valorizar seu ócio mais que o dinheiro e o consumo. As multas foram outro sistema amplamente disseminado. Na França e na Bélgica, no século XVIII, os operários podiam ser multados por chegar tarde, por empregar demasiado tempo na comida, por fumar, cantar, brigar, etc. Outra forma de quebrar a resistência dos trabalhadores foi a substituição por mulheres e crianças. No caso das crianças, eram muito mais fáceis de disciplinar que os adultos apegados às suas tradições de independência. Além disso, as crianças podiam ser tratadas pelas sanções comuns aos adultos (demissões, multas e outros) além de castigos corporais, confinamentos, vestimentas degradantes, etc. A transição para as formas de trabalho próprias do capitalismo adquire a forma espetacular de um choque entre culturas. A Europa se empenhava em fazer outros povos abandonar seu modo de vida em troca das excelências modernas de converter-se em proletariado agrícola ou industrial. Os espanhóis tentaram obter vantagens por meio da mão de obra indígena, sem obter sucesso, pois esses negaram-se a trabalhar sendo então chamados de preguiçosos, vadios e indolentes. Na América, havia a disponibilidade de terras para os brancos, porém, os índios não se sujeitavam ao trabalho assalariado. Foram os negros africanos que ofereceram a mão de obra nas plantações. Os agentes de recrutamento os assediavam a aceitar o trabalho mediante violência ou vendiam-lhes produtos fazendo-os cair em dívidas. Uma vez envolvidos em dívidas eram obrigados a aceitar o trabalho assalariado. Essa sorte não estava reservada somente aos índios e negros, mas a todo aquele que subsistisse à margem do trabalho assalariado ou da grande propriedade.

2ª parte – A CONTRIBUIÇÃO DA ESCOLA

Com o desenvolvimento da manufatura buscava-se mão de obra barata e disciplinada. O disciplinamento de crianças por meio das casas de trabalho (workhouses) na Inglaterra do século XVIII que depois foi convertido em Schools of Industry, visava educá-las na disciplina e hábitos necessários para o trabalho. As crianças pobres eram internadas e escolarizadas. Submetidas a muitas horas de trabalho e alguma de instrução. Na França, as crianças eram internadas em hospícios, mão de obra para industriais que as contratavam diretamente nas instituições em que estavam internadas. Essas recebiam educação o bastante para que aprendessem a respeitar a ordem social, mas não tanto que pudessem questioná-la. A infância oferecia vantagem de ser modelada desde o princípio de acordo com as necessidades da nova ordem capitalista e industrial. A proliferação da indústria exigia um trabalhador piedoso e resignado. Devia ele aceitar a trabalhar para outro e fazê-lo nas condições que esse lhe impusesse. A fé, a piedade, a humanidade, a resignação e as promessas de que o reino dos céus passaria a ser dos pobres eram suficientes para obter a submissão e moldá-los no momento de sua formação. As escolas não eram criadas com este propósito, mas alguns fabricantes afirmaram que as crianças voltavam “mais tratáveis e obedientes, menos briguentas e vingativas”. O ensino religioso, principalmente, imputava nos jovens o comportamento, as disposições e traços de caráter mais adequado para a indústria. A questão não era ensinar um certo montante de conhecimento, mas ter o aluno entre as paredes da sala de aula submetido ao olhar vigilante do professor tempo suficiente para domar seu caráter e dar forma adequada ao seu comportamento. Nas escolas metodistas inglesas no princípio do século XIX, a primeira coisa que os alunos aprendiam era a pontualidade. Entre seus muros, a disciplina escolar assemelhava-se muito à militar. No processo de industrialização dos Estados Unidos também foi a escola o mecanismo principal para a “americanização” dos camponeses, convertendo-os em cidadãos da nova pátria, mais adequados às necessidades das indústrias. Assim, a escola iria exercer o papel de socializar os jovens para o trabalho assalariado. Taylor propôs para a indústria um sistema de organização baseado no controle dos processos de produção, rotinização de tarefas e gestão dos recursos humanos. As escolas deveriam reconhecer a liderança do mundo empresarial. Os produtos da educação deveriam ser ministrados com a mesma precisão dos da indústria. Os primeiros sistemas escolares da história do ocidente foram criados com finalidades políticas, religiosas ou militares. Até o início do processo de industrialização a grande maioria dos camponeses aprendia fazendo e os artesãos como aprendizes e oficiais. Por conseguinte, torna-se claro que as escolas antecederam o capitalismo e a indústria, entretanto, pode-se afirmar que a necessidade de mão de obra para atender a demanda industrial foi um fator poderoso a influir nas mudanças ocorridas no sistema escolar. O propósito da escola era produzir os modos de comportamento e atitude necessários para sua inserção não conflitiva no mundo do trabalho, hábitos como obediência e docilidade eram considerados “bons hábitos de trabalho”. Os alunos viam-se inseridos dentro de relações de autoridade e hierarquia, tal como deveriam fazê-lo quando se incorporassem ao mundo do trabalho. Longe de ajudar os alunos a se desenvolverem como indivíduos maduros, autossuficientes e auto motivados, as escolas fazem de tudo para mantê-los em um estado de dependência crônica, quase infantil. São levados a aceitar a necessidade da ordem, do silêncio, da imobilidade, da simultaneidade, dos horários coletivos por meio da autoridade. A autoridade, uma das características do mundo do trabalho, é apenas uma dimensão pessoal da organização à qual a escola serve e que se opõe às relações pessoais e íntimas e estas às relações impessoais, formais e burocráticas daquele. Crianças e jovens são agrupados de forma uniforme sem a interferência de opiniões individuais nem relações afetivas. As crianças e jovens escolarizados são preparados para a aprendizagem passiva, ao que lhes impõe a escola e regulada pelo professor, assim este aluno também carece da capacidade de decisão sobre seu trabalho e torna-se obediente ao poder hierárquico, às normas e regulamentos burocráticos do processo de trabalho. A escola exerce importante influência nas relações sociais, pois, preparam o indivíduo para aceitar e incorporar-se às relações de produção ou ao processo de trabalho dominante. A escola é hoje o principal mecanismo de legitimação meritocrática de nossa sociedade, pois, supõe-se que por meio dela seleciona-se os mais capazes para desempenhar as funções mais relevantes. Diante de motivações extrínsecas os estudantes são levados a aceitar as atividades pouco significativas, rotineiras e desprovidas de interesse. Esta atividade prepara-os para fazer o mesmo no seu ambiente de trabalho. É aprendizagem da chateação, da monotonia, da dissociação interior da própria atividade. Uma vez que o trabalhador já está fora de si e não se identifica com as demandas da organização “a busca desesperada de gratificação fora do trabalho é o auge do consumismo, uma vez que não a encontrou dentro”. Frente a um processo de trabalho marcado por ordens, normas, rotinas, no qual o indivíduo encontra-se constantemente submetido a uma autoridade alheia e burocrática. A escola tenta colocar em seu discurso pedagógico a “solidariedade”, a “cooperação” e o “trabalho em equipe”, mas no fundo estimula a competição entre os alunos por meio das notas. Estas estabelecem uma categorização entre os estudantes à qual os professores associam sua imagem e sua estima. A introdução da escola seriada por idades escolares associada à idade biológica, separando-os por turma, propiciou a padronização dos critérios de avaliação e organizou a competição em torno deles. Na sociedade capitalista a escola desempenha o papel de socialização para o trabalho. Seu papel autoritário e sua estrutura hierarquizada reproduz o processo de produção industrial.
Por: Silvia Cota, 2016.

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